A paisagem cultural da China, como já mencionei aqui diversas vezes, possui 55 minorias étnicas e uma maioria Han, que corresponde a mais de 90% da população. Essa diversidade é também um palco onde a música se torna uma das mais ricas expressões de identidade, principalmente para os grupos minoritários.
O estudo da música dessas populações não se restringe, no entanto, à estética, mas à sua complexidade, que envolve a relação com a maioria Han.
A representação da etnicidade na China se diferencia da do Brasil. Aqui, assim como em boa parte dos países ocidentais e naqueles que foram colonizados, há grupos não-étnicos, na maior parte brancos, que se relacionam com grupos étnicos de uma maneira diferente de como os Han lidam com as minorias étnicas na China. O desafio da coesão, no entanto, existe nos dois países, embora a China compartilhe elementos de uma identidade coletiva mais forte. Assim, por meio da arte, especialmente na educação musical, os desafios de equilibrar a preservação de identidades culturais únicas com a coesão nacional implicam uma série de medidas governamentais.
Conversa entre mulheres do grupo étnico Yi, China. |
Historicamente, o pensamento chinês esteve (e ainda está) enraizado na tradição confucionista, que operava sob uma distinção entre o grupo dominante Xia e as minorias periféricas, os Yi. Essa perspectiva etnocêntrica é evidenciada no próprio nome do país, Zhongguo (País do Meio).
Embora a ideologia confucionista permitisse a assimilação das diferenças, essa abordagem era fundamentalmente diferente das noções modernas de direitos das minorias. É importante lembrarmos que o conceito de "étnico" é recente (em comparação ao pensamento de Confúcio).
Nesse sentido, o ideal da "grande unidade" visava integrar as diferenças culturais e sociais sob uma única autoridade política, algo que já estava presente em elementos mitológicos, como a própria figura do Imperador Amarelo, que conseguiu conter forças divergentes e promover a paz entre as diferenças.
Mesmo após a Revolução de 1949, quando o Partido Comunista Chinês (PCC) promoveu a igualdade com base em um nacionalismo diferente do sentido ocidental — fundamentado no conceito de minzu zhuyi —, a percepção de que as minorias eram "primitivas" ou "atrasadas" persistiu, justificando a prevalência da etnia Han. Como apontado por alguns autores, a generosidade estatal para com as minorias poderia, ironicamente, se traduzir em uma forma de subordinação.
A preservação da cultura musical em um Estado unificado
A partir dos anos 1980, com a abertura comercial e as novas concepções socialistas pós-Mao, a China testemunhou um movimento significativo em direção à preservação cultural.
Esse período marcou a recuperação de inúmeras tradições musicais que haviam sido silenciadas ou prejudicadas durante a Revolução Cultural. Um dos marcos foi a fundação, em 1983, da Sociedade do Folclore Chinês, uma organização acadêmica dedicada à salvaguarda e divulgação dos estilos musicais das minorias étnicas da China.
Dança folclórica (Lusheng). Comum na etnia Miao, mas estudiosos apontam ser popular também em outras minorias étnicas do sul. |
Além disso, a iniciativa de desenvolver livros didáticos bilíngues e cursos de formação para professores de música em suas línguas maternas nas regiões étnicas demonstrou um esforço estatal para tornar o ensino culturalmente mais relevante.
No entanto, a forma como essas culturas são apresentadas não é isenta de complexidades, e muitos autores continuaram apontando questões importantes a considerar. Estudiosos levantam a questão da "exotização", onde as culturas minoritárias tendem a ser retratadas de forma a enfatizar suas qualidades mais alegóricas, correndo o risco de objetificá-las.
Para superar essa narrativa única, a imersão cultural e o aprendizado feito com os próprios membros desses grupos são considerados essenciais.
Questões envolvendo a coletividade chinesa, enquanto identidade nacional, também são apontadas pelos estudiosos. A figura do indivíduo nacional também é incentivada como um instrumento crucial na busca pela unidade.
Desde os anos 1990, o governo tem reforçado a mensagem patriótica na educação e nas artes, legitimando o sistema de valores do Partido Comunista. Porém, antes que pensem nisso como uma invenção do PCC, saibam que essa prática é antiga, assim como a coletividade chinesa como agregadora de diversas identidades étnicas.
Essa estratégia se alinha a uma longa tradição histórica, como o Édito Sagrado do imperador Kangxi no século XVII, que usava a moralização política para instruir a população. Essa prática persiste, como demonstrado por iniciativas recentes do governo, visando manter a lealdade da população.
O desafio central, portanto, é como o governo pode apoiar as culturas únicas das minorias sem que isso comprometa a estabilidade política, buscando uma harmonia entre a diversidade cultural e a unidade nacional. Contudo, não é um dilema urgente, nem preocupante, porque ele existe há muitos séculos na história da China.
Leia também:
Adivinhação e tradição: o que nunca morre na China?
Modernidade e imaginação coletiva no cinema chinês na primeira metade do século XX: disputas simbólicas e construção de pertencimentos
Temas abordados:
Antropologia visual China; estudos etnográficos China; minorias étnicas China; performance cultural China; Minorias étnicas, Sociedade do Folclore Chinês, Xia, Yi, da yitong, Zhongguo; Ethnic minorities, Chinese Folklore Society, Xia, Yi, da yitong, Zhongguo; 中文简体: 少数民族, 中国民俗学会, 夏, 夷, 大一统, 中国.
Nenhum comentário:
Postar um comentário