As relações étnicas na China hoje são resultado de processos históricos longos e políticas de Estado centradas na ideia de unidade nacional em meio à diversidade.
O país reconhece oficialmente 56 grupos étnicos, sendo os Han a maioria absoluta, com cerca de 92% da população. Os outros 55 grupos são classificados como minorias nacionais. A lógica estatal é de “unidade na diversidade”, conceito trabalhado por Fei Xiaotong (antropólogo pioneiro na China do início do séuclo XX), no qual a nação chinesa seria composta pela união dessas etnias, cada uma com suas particularidades, mas integradas ao projeto nacional.
A Constituição da China garante igualdade étnica, autonomia regional e defende políticas de equidade, incluindo sistemas próprios de administração em áreas de maior concentração de minorias, formalizados desde 1984. O nacionalismo, nesse contexto, não é só instrumento de identificação coletiva, mas também de manutenção da integridade territorial e da estabilidade do Estado.
O termo Zhonghua minzu, “nação chinesa”, foi consolidado durante a resistência à invasão japonesa e passou a incluir todas as etnias como parte desse coletivo.
Apesar da ênfase na diversidade, a centralidade cultural Han marca as dinâmicas sociais e políticas do país.
O etnocentrismo Han é antigo, alimentado por mitos fundadores e tradições Huaxia, muitas vezes tratado como referência principal da história chinesa. O termo Huaxia (华夏), nesse sentido, faz referência ao povo original que habitava o Zhongyuan (Planícies Centrais), a região entre os rios Amarelo e Yangzi, considerada o território ancestral do povo chinês.O confucionismo, por sua vez, defendia um universalismo cultural, não étnico (o conceito de etnicidade é posterior), que facilitava processos de assimilação de grupos externos. O resultado é uma política oficial que permite diversas expressões, mas, ao mesmo tempo, é frequentemente criticada por favorecer uma tendência à homogeneização cultural e linguística. Há, inclusive, estudos atuais de cientistas sociais chineses que pesquisam essa interação, com trabalhos de campo envolvendo o impacto do idioma oficial em práticas e usus de idiomas locais.
Nos debates externos, especialmente em análises ocidentais, as críticas se concentram em episódios de repressão e tensão envolvendo grupos como uigures, tibetanos, hui e mongóis, localizados principalmente em regiões periféricas. Os conflitos nessas áreas, marcados por episódios de violência desde os anos 1980, são tratados pelo Estado chinês como casos isolados e, muitas vezes, associados a células terroristas. A repressão de práticas religiosas, a censura na internet e acusações de violação de direitos humanos são temas recorrentes no noticiário internacional ocidental.
Essas críticas, no entanto, partem de perspectivas externas, muitas vezes influenciadas por agendas geopolíticas. O discurso do “país fechado” contrasta com o cenário real: a China é hoje um dos países com maior uso de internet no mundo, e há ampla circulação de informações e experiências, tanto dentro como fora do país. Mesmo que tenha sido pioneira na regulamentação das redes e na compreensão dos dados do usuário como instrumento de poder internacional, as medidas restritivas estão ancoradas em sua legislação; algo que, no início era visto como autoritário, mas atualmente tem sido debate em diversos países, inclusive no Brasil.
O receio ocidental sobre o risco de fragmentação territorial também aparece em discussões sobre autonomia regional, que, para alguns, seria um passo para movimentos separatistas, mas a percepção sobre identidade e diferença dentro da China é distinta daquela promovida por olhares estrangeiros. O conceito de mingzu zhuyi (民族主义), usado no momento de elaboração para articular a questão nacional, no momento de sua elaboração refletia tanto tendências inclusivas quanto problemáticas típicas do início do século XX, como, por exemplo, a influência do evolucionismo social ao se tratar de diferentes grupos sociais e das ideias de raça atreladas a essa concepção. Seu desdobramento até os usos atuais, também passam por análises de antropólogos chineses que problematizam seu uso e a relação com unidade nacional e o próprio Estado.
Na prática, o nacionalismo chinês contemporâneo não pode ser entendido apenas como imposição de homogeneidade. A história das relações entre grupos étnicos na China precisa ser compreendida não apenas como uma dinâmica sociológica, mas, sobretudo, atravessada por sentidos simbólicos. A manutenção da unidade passa menos por moralidade ou ideologia e mais por um imaginário históricos fundamentado na necessidade de garantir subsistência, estabilidade e resposta a crises, como desastres naturais. Mesmo que tais aspectos não sejam acionados hoje de forma objetiva, ele cria uma dinâmica complexa, em que conflitos existem, mas não podem ser reduzidos a um esquema simples de opressão estatal versus diversidade ameaçada. Essa dicotomia pode funcionar em países ocidentais e aqueles influenciados consideravelmente por eles na formação dos seus Estados nacionais, mas não todos os países.
A questão do orgulho nacional é outro ponto de tensão entre discursos. Enquanto a mídia internacional costuma enfatizar o aspecto repressivo das políticas chinesas, pesquisas apontam que o sentimento de pertencimento e orgulho de “ser chinês” é elevado, inclusive entre grupos de minorias. A afirmação étnica e os conflitos, nesse sentido, não significam necessariamente rompimento com a ideia identidade nacional, mas uma reivindicação de que essa unidade atue e aja conforme suas demandas.
No campo acadêmico, a etnologia e antropologia chinesa buscam fundamentar uma narrativa nacional baseada em “características chinesas”, recorrendo tanto a abordagens ocidentais e marxistas quanto a dados arqueológicos e genéticos para justificar a integração dos diferentes grupos.
O panorama geral é de um campo marcado por contradições e disputas de sentido, tal como qualquer sociedade. A política oficial enfatiza a unidade na diversidade, mas a predominância Han, os dilemas de integração e as pressões externas mostram que as relações étnicas na China são atravessadas por tensões reais, sem respostas simples ou interpretações unilaterais. O olhar sobre esse tema precisa considerar tanto as dinâmicas internas quanto a influência dos discursos externos. No entanto, em termos de soberania, é preciso defender sempre que cada país têm o direito de lidar com suas questões internas sem que uma régua moral imposta seja utilizada para esconder interesses de países dominantes.
É importante considerar o processo histórico
Encerrar o debate sobre relações étnicas na China a partir de categorias como “autoritarismo” ou “falta de liberdade” é insuficiente para compreender o que está em jogo. A construção da unidade nacional não nasce com o socialismo de 1949. O tema já era central no final do século XIX, quando as pressões externas e as insatisfações populares cobravam da dinastia Qing uma resposta mais eficaz diante das ameaças estrangeiras e da fragmentação interna. Ao longo da história chinesa, os ciclos de ascensão e queda das dinastias têm como marca recorrente a tensão entre grupos internos, sempre seguidos pelo esforço de uma nova dinastia em buscar uma acomodação capaz de reduzir conflitos e restabelecer uma base comum. O confucionismo, reinterpretado ao longo dos séculos, foi elemento chave nesse processo, funcionando como eixo de equilíbrio das diferenças internas e oferecendo modelos para o manejo das relações hierárquicas e para o controle das disputas.
Esse padrão relacional não desapareceu. Ele atravessou períodos de paz e crise, sobreviveu às revoluções e foi reconfigurado por novas ideologias e sistemas políticos, mas nunca deixou de atuar como referência. No início do século XX, a demanda pela unidade nacional foi incorporada pelas forças republicanas e, depois, pela Revolução Popular de 1949, como resposta à percepção de incapacidade do antigo regime de manter a integridade do território diante das ameaças externas.
Nesse sentido, reduzir os conflitos étnicos atuais à ideia de “rachaduras” no governo ou ao fracasso de uma política recente ignora o fato de que a gestão das dinâmicas internas, inclusive por meio de legislação específica sobre grupos étnicos, é parte constitutiva da história do Estado chinês desde dinastias antigas, como a Tang.
Por fim, para analisar a China contemporânea, é preciso abandonar o filtro que reduz experiências históricas a dicotomias como liberdade versus autoridade. A complexidade do cenário exige um olhar atento à longa duração dos processos, à especificidade das soluções chinesas e à natureza relacional que marca tanto o confucionismo quanto o próprio Estado chinês. Isso não significa negar conflitos ou dificuldades, mas compreender que eles não representam uma falha do sistema, e sim um traço estrutural da história da China.
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