Choose your language

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Por que a China quer Taiwan? A verdade que ninguém te conta

A pergunta “por que a China quer Taiwan?” está presente em debates de redes sociais e reportagens de grandes portais de notícia, mas carrega uma armadilha conceitual difícil de escapar. Não se trata de uma dúvida neutra. Ela nasce de um "senso comum" construído por décadas de disputas geopolíticas, pressões externas e campanhas midiáticas que tratam Taiwan como “algo separado”, uma espécie de “anti-China” ou território à parte, cuja integração ao continente seria desejo recente, ligado ao socialismo ou a projetos expansionistas de Pequim.

No entanto, um olhar atento à história revela que essa formulação ignora não só o processo histórico, mas o modo como a coletividade chinesa se entende e se organizou ao longo dos séculos.

Raízes históricas e o pertencimento coletivo

É um fato que a relação entre a China continental e Taiwan está marcada por disputas ideológicas, mas o elemento central é que, durante a maior parte da história anterior à Revolução Popular, Taiwan foi compreendida como parte do mesmo corpo político e cultural. A cisão atual não resulta de um movimento separatista autônomo, mas do desfecho da Guerra Civil Chinesa, em 1949, quando o governo nacionalista do Kuomintang (KMT), derrotado pelo Partido Comunista Chinês (PCC), se retirou para a ilha de Taiwan, levando consigo a estrutura administrativa da antiga República da China.

A partir desse momento, duas administrações passaram a reivindicar a legitimidade do nome “China”. O Ocidente, sobretudo os Estados Unidos, optou por reconhecer Taiwan como legítima representante em fóruns internacionais, não por uma avaliação neutra sobre a história ou o direito, mas como parte da estratégia de contenção do comunismo e de isolamento da recém-proclamada República Popular da China (RPC). Mesmo que Taiwan jamais tenha deixado de ser entendida pelos próprios chineses e por grande parte do mundo até os anos 1970, como pertencente a uma mesma entidade nacional, ainda que sob governos rivais.

A disputa internacional e a inversão de papéis

O que a pergunta que estrutura este post, “por que a China quer Taiwan?”, omite é o contexto imperialista do início do século XX, quando potências como Japão, Reino Unido, França e, posteriormente, Estados Unidos, dividiram a China em zonas de influência e buscaram moldar o destino do país. 

Cedida ao Japão em 1895, após a derrota da dinastia Qing, a ilha de Taiwan só foi reincorporada ao território chinês no fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Poucos anos depois, devido à guerra civil interna e à intervenção ocidental, a administração da ilha ficou separada do continente, mas nunca houve, da perspectiva chinesa, uma ruptura definitiva do pertencimento. O desconhecimento das pessoas desse período histórico (e anteriores) acaba por reforçar a leitura recente de invasão.

Charge do início do século XX mostrando como os 
países ocidentais viam a China como um grande bolo a ser dividido.

A lógica que se institui nesse contexto é de acusação invertida. Na defesa do poder ocidental sobre países periféricos, aqueles que historicamente ocuparam, fragmentaram e tentaram controlar a China, passaram a chamar de “invasora” a parte que resistiu à fragmentação. A insistência em tratar Taiwan como “outro país”, nesse sentido, responde mais ao desejo de manter uma ordem global favorável aos seus próprios interesses do que a um diagnóstico fundamentado na história local. Trata-se de uma narrativa em que o ocidente reivindica para si o direito de nomear e legitimar governos, enquanto recusa à China o direito de solucionar, segundo suas próprias matrizes, suas pendências históricas e simbólicas.

Coletividade e unidade: o olhar chinês sobre si

Para entender de fato a questão, é preciso perceber que, no imaginário chinês, tal qual a qualquer sociedade que não foi impregnada ao extremo com o individualismo liberal, a identidade coletiva está diretamente relacionada ao sentido de como o indivíduo interage no grupo e como este compreende a si e o todo. O pertencimento à coletividade não é mero dado ideológico, mas um elemento estruturante do cotidiano e da organização política desde antes da modernidade. Isso se expressa tanto em políticas estatais quanto nas formas como o cinema, a literatura e a própria vida urbana e rural são organizadas.

Mesmo as diferenças regionais e étnicas são, em geral, mobilizadas em prol de uma unidade inclusiva, e não como fatores de ruptura. A individualidade (considerando a construção do indivíduo como ser social), ou identidade (como este indivíduo ou grupo se identifica em relação ao que considera diferente) existe em relação e não como negação do Outro. No caso chinês, a coletividade, longe de ser uma invenção do socialismo, é parte de uma trajetória que atravessa milênios. Basta recordarmos como se deu os processos dinásticos, as rupturas e acomodações das diversas identidades étnicas em prol sempre de uma unidade projetada na força do Estado.

Nesse contexto, a ideia de “reunificação” com Taiwan não significa um projeto de conquista expansionista de um "regime autoritário", mas sim a resolução de uma pendência histórica produzida artificialmente pelas guerras (bélicas e ideológicas) do século XX. Trata-se de um processo de reconstrução de uma totalidade que, para os chineses, jamais deixou de existir no plano simbólico, ainda que tenha sido fragmentada no imaginário global ao longo das décadas da segunda metade do século passado, através do isolamento geopolítico e midiático imposto ao país.

A persistência da narrativa ocidental

É fundamental notar que o Ocidente, no início do século passado, não só ocupou a China militarmente e economicamente, mas também tentou impor sua visão de mundo, sua lógica liberal-individualista e suas categorias de análise. Na minha pesquisa sobre o cinema chinês da primeira metade do século XX, tem ficado claro o quanto ele foi utilizado no início como recurso de imposição narrativa do ocidente, passando a ser utilizado pelos chineses da mesma forma política e com mais força, a partir de 1930. Há artigos que mencionam, inclusive, pesquisas sobre o mercado chinês cinematográfico deste período, feitas por agentes dos Estados Unidos, seguida de um aumento dos filmes estadunidenses exibidos. 

Nesse sentido, o discurso segundo o qual Taiwan seria “vítima” de um desejo de conquista chinês, é parte dessa construção. Ou seja, inverte papéis históricos e apresenta como natural uma divisão recente e artificial. 

É importante colocar também que propagam tais discursos conscientes de que as relações sociais e os sentidos simbólicos compartilhados, se transformam conforme as dinâmicas políticas de poder, fazendo com que a insistência e propagação da mesma narrativa, impacte, sobretudo, os próprios chineses de Taiwan, aumentando a possibilidade de transformação de uma artificialidade em uma realidade concreta.  

O que se vê, portanto, não é uma “China querendo Taiwan”, mas uma China que nunca deixou de considerar a ilha parte de si, enquanto potências estrangeiras tentam transformar a exceção da guerra civil do período anterior a 1949, em norma, perpetuando a divisão para atender a seus próprios interesses geopolíticos e econômicos atuais.

Mapa da China do império Qing (1644-1912)

Assim, responder à pergunta “por que a China quer Taiwan?” exige antes de tudo recusar a própria premissa da dúvida. O que está em jogo não é um desejo expansionista, mas a afirmação de uma continuidade histórica, de um projeto coletivo que resiste à fragmentação imposta de fora até hoje. No centro do debate está a disputa por narrativas. Enquanto o Ocidente insiste em legitimar a separação como estado permanente, a China reivindica o direito de recompor, nos seus próprios termos, no seu próprio tempo, a unidade de sempre.

Se há algo a aprender com a história da relação China-Taiwan, é que as categorias com que olhamos o mundo não são universais. As histórias contadas pelos veículos de comunicação de massa, mesmo que sob o manto de representarem o "Mundo Livre", não necessariamente são neutras, expressando uma verdade absoluta e irrefutável. Em certos contextos, o pertencimento coletivo, a memória histórica e a resistência à fragmentação são tão centrais quanto os valores individuais que o próprio Ocidente costuma projetar como norma global. No entanto, o mundo está se transformando e novos sentidos hoje ganham forma na união do Sul Global, na figura dos BRICS





Nenhum comentário:

Postar um comentário