Hoje vou postar algo mais técnico, que talvez apenas aqueles imersos no ambiente antropológico vão se interessar. Mas, como este lugar é também para falar sobre pesquisa, abordar métodos faz parte do escopo.
Para quem não está familiarizado com os debates mais antropológicos, talvez seja interessante perceber o universo por trás das falas de um cientista social que o diferencia do simples achismo sobre comportamento humano.
Falar sobre etnografia multissituada envolve meu trabalho de pesquisa, e resolvi escrever este post porque, embora não seja algo novo, muitos colegas estudantes de graduação ainda têm dúvidas sobre os elementos mais básicos desse método e como ele se diferencia dos métodos tradicionais de pesquisa antropológica.
Embora eu já esteja envolvido com assuntos relacionados à China desde os 14 anos, foi com base na etnografia multissituada que fiz uma viagem pela China com objetivos mais antropológicos, passando por várias cidades e contextos diferentes, depois de uma imersão de mais de três anos em ambientes digitais, onde me conectei com chineses, fiz amizades e desenvolvi reflexões relacionadas à minha pesquisa de doutorado.
Você pode assistir aos vídeos que gravei lá aqui.
O método antropológico
Historicamente, a antropologia se caracterizou e se consolidou em torno do trabalho de campo intensivo e de longo prazo em uma única localização geográfica, muitas vezes com foco em comunidades consideradas "isoladas" ou "autônomas", o que ajudou a construir a imagem do antropólogo como alguém que não está imerso apenas em salas de aula universitárias, usando terno e decorando fala de autores.
Franz Boas, um antropólogo alemão conhecido como o pai da antropologia estadunidense e muito associado ao relativismo cultural, realizou pesquisas aprofundadas com grupos específicos, como os Kwakiutl e os esquimós, priorizando a compreensão detalhada de suas culturas em seu próprio contexto, em oposição a comparações abstratas ou generalizações.
No momento em que Boas defendeu a importância de reconhecermos culturas sem um viés hierarquizante (final do século XIX), estava dialogando com o evolucionismo cultural, uma maneira de compreender culturas que orientava, inclusive, decisões geopolíticas de invasão a outros países ou, internamente, em países como o Brasil, que adotava o eugenismo no início do século XX. Ele era contra "abstrações rígidas" e "classificações de gênero e espécies culturais". Essa abordagem, hoje vista como tradicional, visava a uma compreensão holística de uma cultura delimitada. No entanto, o tempo passa, e as metodologias precisam sempre, como as de Boas, refletir as necessidades do seu tempo.
O contexto para uma nova abordagem antropológica
A necessidade de ir além do estudo de um único "campo" ou "cultura" começou a ser teorizada à medida que a antropologia passou por uma "crise da autoridade etnográfica". James Clifford, antropólogo e historiador estadunidense, nascido em 1945, discutiu como as representações etnográficas são construídas e como a autoridade do etnógrafo no campo precisava ser questionada, sugerindo que as realidades sociais são compostas por "múltiplos discursos" e perspectivas diversas, que não podem ser reduzidas a uma única essência ou dicotomia.
Embora Clifford não use o termo "multissituada", sua crítica à "autoridade etnográfica monogâmica", ou seja, que se refere à ideia de uma única voz ou perspectiva dominante na descrição de uma cultura ou comunidade, aponta para as limitações de confinar a pesquisa a um só lugar. Ele deu ênfase à complexidade, às relações de poder e à maneira de construir o conhecimento etnográfico, abrindo caminho para metodologias que reconhecem a interconexão e a fluidez das culturas num mundo cada vez mais globalizado.
Mas o que é então etnografia multissituada?
A etnografia multissituada, dentro desse contexto, é uma metodologia de pesquisa antropológica que busca investigar fenômenos culturais e sociais que não se confinam a uma única localidade geográfica. Em vez de focar intensivamente em um "campo" singular e delimitado, ela acompanha pessoas, objetos, ideias, conflitos ou processos culturais através de suas múltiplas manifestações e interconexões em diferentes locais. Ela se faz necessária quando estamos pesquisando fenômenos que, se observados em apenas uma localidade, seriam insuficientes para perceber tanto sua variação quanto sua atuação em diversos contextos, onde os grupos sociais se diferenciam; por isso, transcendem as fronteiras geográficas.
- Rastreamento de processos: a pesquisa segue um fenômeno em vez de uma fronteira geográfica fixa. Por exemplo, pode-se rastrear a produção e o consumo de um produto global, a migração de um grupo de pessoas, ou a disseminação de uma ideia política ou religiosa.
- Múltiplos "campos": o "campo" etnográfico é expandido para incluir diversos locais onde o fenômeno de interesse se manifesta ou é impactado, como cidades de origem e destino de migrantes, locais de produção e venda de mercadorias, ou diferentes centros de ativismo.
- Conexões e fluxos: a ênfase está nas relações, interações e fluxos que conectam esses locais, revelando como a cultura é moldada por processos transnacionais, globais e interligados.
- Descentramento: não há um único centro de análise ou um "campo" primário, mas uma rede de lugares e interações que formam o objeto de estudo.
Como a etnografia multissituada se encaixa nas metodologias de pesquisa antropológica?
A etnografia multissituada representa uma resposta às críticas e desafios enfrentados pela antropologia no final do século XX e início do XXI. Assim como Boas refletiu seu momento, ela também oferece uma maneira de compreender fenômenos pertinente aos tempos atuais, onde a vida online e offline se confundem e o trânsito de pessoas entre diferentes localidades é intenso. Surgiu da necessidade de compreender realidades que a etnografia tradicional, focada em comunidades delimitadas, não conseguia capturar adequadamente. No entanto, o termo "multissituada" se consolidou nos estudos antropológicos a partir do artigo Ethnography in/of the World System (1995), publicado pelo antropólogo estadunidense George Marcus, que abordou a necessidade de se estudar sistemas mundiais.
Assim, vale apresentar alguns elementos contemporâneos que fundamentam novos métodos de pesquisa antropológica:
- Globalização e mobilidade: vivemos hoje em um mundo onde pessoas, bens, informações e culturas se movem constantemente, tornando o estudo de um único local insuficiente para entender fenômenos complexos.
- Superação do essencialismo cultural: a etnografia multissituada ajuda a desconstruir a noção de culturas como entidades estáticas e isoladas, mostrando como elas são formadas por interações e trocas contínuas — um tema que, como vimos, Clifford já abordava teoricamente com a "heteroglossia" e a crítica a visões reducionistas.
- Resistência à abstração: embora Boas defendesse o estudo detalhado em campo para evitar abstrações, a etnografia multissituada, ao conectar diferentes locais, ainda busca o detalhe etnográfico, mas em uma escala expandida, evitando generalizações vazias ao fundamentá-las em interconexões concretas.
Em resumo, enquanto a tradição antropológica, exemplificada pelo trabalho de Boas, se concentrou em estudos aprofundados de um "campo" específico e bem delimitado, a emergência de discussões sobre a complexidade e a natureza multifacetada dos fenômenos culturais — como as abordagens críticas à autoridade etnográfica de Clifford — abriu caminho para a necessidade de acompanhar os fenômenos culturais através de seus múltiplos locais de manifestação e interação, reconhecendo que a "cultura" não é mais uma entidade estática, mas um processo dinâmico de sentidos interconectados.
Por fim, embora este texto seja um resumo que buscou apenas iniciar um entendimento sobre o método, e por isso tenha deixado de citar muitos autores e debates para que não ficasse enfadonho e pesado para leitores não acadêmicos, acredito que ele já oferece uma boa introdução.
Pense na etnografia multissituada como um detetive seguindo uma pista por várias cidades interligadas por diferentes meios de transporte e comunicação, em vez de investigar apenas a cena de um único crime. O antropólogo, dentro desse exemplo, vê a cena do crime, mas entende que as provas estão espalhadas por diferentes tipos de pessoas e locais. Cada localidade oferece uma peça do quebra-cabeça, e é a conexão entre essas peças dispersas que revela a imagem completa e complexa do fenômeno estudado.
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