Em meados de julho de 2025, no condado de Yanbian, província de Sichuan, a comunidade Yi se reuniu para celebrar o tradicional Festival das Tochas, uma festividade que alguns chamam de “Carnaval do fogo” chinês, considerado hoje um patrimônio cultural imaterial. O Festival originou-se da adoração do fogo pelos ancestrais e tem sido seguido por mais de 1.000 anos.
Embora festas coletivas façam parte de muitas culturas, o que chama atenção aqui é o modo como essas manifestações são parte viva da identidade desses grupos, um contraponto ao olhar homogêneo muitas vezes associado a uma China homogênea e hi-tech.
Durante o festival, com suas fogueiras comunitárias, danças étnicas, cantos tradicionais, competições populares, percebemos um princípio forte de coletividade ritualística. No entanto, isso não se trata apenas de entretenimento ou uma performance estética, mas uma reafirmação anual de pertencimento étnico, de conexão com membros do grupo e com a terra ancestral.
É através dessas cenas, da chama partilhada e de todo ritual coletivo que a comunidade Yi reafirma seu lugar dentro e além da narrativa mais ampla da China contemporânea.
Para quem acompanha debates sobre relações étnicas na China, esse evento mostra que minorias não são meramente “peças alegóricas” dentro da identidade nacional, e tampouco existem descoladas da ideia de país. Assim como qualquer agrupamento social (considerado étnico ou não), através de rituais afirma sua própria história e provoca reflexões. No caso de um povo minoritário que sempre está em contraponto a identidades mais normatizadas, o povo Yi (tal como os povos indígenas brasileiros) afirma valores sobre diversidade, identidade e coletividade, primeiro como diferencial dentro de um Estado unitário, segundo como identidade partilhada com a identidade nacional.
Vale lembrar que suas tradições também dialogam com práticas contemporâneas, como no caso do camping comunitário, que mistura turismo, ancestralidade e convivência social.
A partir da minha pesquisa sobre coletividade no cinema chinês até 1949, posso traçar uma conexão interessante. Tanto no filme comum da época quanto nos eventos étnicos, o coletivo sempre se expressa como experiência de sentido e marcador identitário, para além da própria etnicidade enquanto diferença. Isso acontece porque o coletivo é sempre acionado como valor compartilhado que mantém a coesão social na China. No cinema, isso ocorria tanto em filmes considerados conservadores quanto naqueles chamados de "cinema de esquerda". A disputa era pelo sentido de coletivo e não entre indivíduo e sociedade.
Nesse sentido, o festival pode ser usado como provocação ao olhar ocidental, tão acostumado a ver a relação entre indivíduo e sociedade como algo "naturalmente" hostil. Nos filmes da primeira metade do século XX, a estranheza pode vir de não encontrar um “herói solitário” no centro da cena, mas narrativas coletivas que ganham sentido e, ao mesmo tempo, reforçam a identificação dentro da teia social. No caso do ritual do povo Yi, a provocação surge da não oposição entre etnicidade e nação, ou seja, na consolidação de uma identidade local que compartilha uma identidade coletiva mais ampla, reconhecida hoje como identidade nacional.
É muito importante que enxerguemos tais festejos de forma mais ampla e menos alegórica. Esse olhar, embora muitas vezes parta de um genuíno desejo de valorização, acaba, sem perceber, por engessar esses grupos em um lugar exótico e distante da contemporaneidade, o que não é verdade. Sobretudo na China, onde as pessoas têm consciência de sua origem étnica, mantêm suas práticas e idiomas regionais, ao mesmo tempo em que articulam sua participação nas decisões políticas do país.
Mesmo que, na China, isso seja óbvio devido à própria formação da identidade nacional com base em um conceito inclusivo de nação (pesquise por Mingzu Zhuyi, 民族主义), em contextos ocidentais palavras como “nação”, “etnicidade” e “identidade nacional” podem possuir sentidos muito particulares, que não devem ser usados para explicar dinâmicas não ocidentais.
Vou deixar aqui a matéria completa sobre o festival, que me inspirou a fazer esta breve reflexão.
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