Como é a regulação da internet na CHINA? Saiba como o país lida com plataformas digitais e proteção da infância
- Nino Rhamos
- 18 de ago.
- 4 min de leitura
Atualizado: 5 de set.
Infância, algoritmos e valores coletivos na era digital chinesa
O debate sobre a proteção da infância nas redes digitais ganhou novo fôlego no Brasil após a denúncia do influenciador Felca, cuja repercussão alcançou o Congresso Nacional e a grande imprensa. Ao expor como algoritmos de recomendação favorecem conteúdos que sexualizam menores, Felca trouxe à tona um ponto cego da arquitetura digital: a ausência de mecanismos robustos de controle, responsabilização e regulação culturalmente sensíveis.

Enquanto no Brasil o foco recai sobre o embate entre liberdade de expressão e controle parental, a China apresenta um paradigma diferente, menos centrado no indivíduo e mais estruturado por valores coletivos. O livro, Internet Law in China mostra que esse contraste não deve ser interpretado como um modelo a ser copiado, mas como um estímulo à reflexão sobre as formas possíveis de regulação digital.
Um ecossistema regulatório moldado por valores coletivos.
A China implementou um sistema regulatório abrangente que molda diretamente o acesso e o uso de plataformas digitais por crianças e adolescentes. Esse sistema não depende apenas de leis, mas articula normas jurídicas, licenciamento administrativo, tecnologias de vigilância, obrigações corporativas e mobilização da opinião pública, compondo uma espécie de "ecologia regulatória" com múltiplos atores e níveis de atuação.
No centro desse ecossistema está uma concepção de infância alinhada ao bem-estar coletivo e à harmonia social. A produção e circulação de conteúdos pornográficos, por exemplo, são enquadradas como ameaças à ordem moral e ao desenvolvimento das crianças. A legislação vigente desde 2000 prevê punições severas a quem compartilha material de cunho sexual envolvendo menores, com agravantes definidos pelo tipo de conteúdo, a idade dos envolvidos e o número de publicações.
Além disso, as Provisões Administrativas sobre Programas Audiovisuais na Internet e o exame prévio de conteúdos televisivos impõem limites à exibição de comportamentos sexuais, vulgaridades e outros conteúdos considerados incompatíveis com os valores morais defendidos pelo Estado chinês. A regulação abrange não apenas pornografia, mas também conteúdos com representações de promiscuidade, homossexualidade, linguagem obscena ou música de teor sexualizado — uma delimitação que reflete mais os contornos "ético-culturais" da sociedade chinesa do que um sistema universal de moralidade.
Algoritmos como filtros morais: vigilância e classificação automatizada
Diferentemente do Brasil, onde o debate sobre algoritmos ainda caminha lentamente no campo jurídico, a China desenvolveu uma arquitetura técnica sofisticada de classificação e vigilância. Ferramentas como filtragem por palavras-chave, bloqueio seletivo de sites e controle de DNS são aplicadas por roteadores configurados para interromper ou redirecionar acessos a conteúdos considerados inadequados.
Desde 2003, o chamado Projeto Golden Shield articula recursos como reconhecimento facial, monitoramento de redes, escaneamento de dispositivos e coleta de dados pessoais. Esses mecanismos, combinados, atuam como camadas invisíveis de modulação do comportamento digital. Para crianças e adolescentes, isso significa menos autonomia individual, mas maior conformidade com o projeto de formação moral defendido institucionalmente.
A coleta de dados por grandes empresas — como nos casos envolvendo a Tencent QQ e a Qihoo 360 — gerou controvérsias públicas significativas, exigindo posicionamento e intervenções estatais. Isso desmonta o senso comum de que não existe debate público na China sobre tecnologia e infância. Ao contrário, episódios como esses revelam que a sociedade chinesa discute, contesta e influencia a direção das políticas digitais.
Busca humana, punição social e o papel da comunidade
Um fenômeno emblemático é a chamada human-flesh search (人肉搜索), traduzida como “busca de carne humana” — uma prática em que milhares de internautas colaboram ativamente para identificar e expor indivíduos considerados moralmente condenáveis. Embora controversa, essa prática é vista por alguns setores como expressão da vigilância popular e da supervisão moral da coletividade.
Casos notórios revelam tanto o poder como os abusos desse mecanismo. De um lado, ele levou à investigação de autoridades envolvidas em corrupção; de outro, expôs inocentes e violou direitos à privacidade. Essa ambiguidade reflete tensões entre justiça popular e legalidade, e mostra que o debate sobre moralidade, infância e regulação ultrapassa os limites institucionais — está também entranhado na cultura digital cotidiana.
Internet, infância e diferenças de paradigma: o que está em jogo?
O episódio recente de Felca e a mobilização em torno da “adultização infantil” trazem à tona a urgência de discutir o papel das plataformas e da sociedade na proteção da infância digital. A experiência chinesa não deve ser romantizada nem demonizada, mas compreendida à luz de suas próprias premissas históricas e culturais.
Ao contrário de sociedades ocidentais marcadas pela centralidade do indivíduo liberal, a China construiu uma noção de liberdade condicionada à harmonia coletiva. Isso implica uma concepção de infância menos centrada na autonomia individual e mais vinculada à formação moral como responsabilidade do Estado, da escola, da família e da própria sociedade.
É nesse ponto que a antropologia oferece sua contribuição: ao evitar julgamentos etnocêntricos e reconhecer que diferentes sociedades produzem diferentes soluções para seus dilemas. O que a China nos mostra não é um modelo a ser seguido, mas um caso exemplar de como a internet pode ser moldada por valores locais, além de como a legislação pode expressar, de forma complexa, os debates internos de um contexto sociocultural.
No Brasil, esse olhar comparativo pode nos ajudar a pensar alternativas: quais são os valores que queremos proteger? Como garantir liberdade de expressão sem abrir mão da proteção de crianças e adolescentes? E o mais importante: quem deve ser responsabilizado quando os algoritmos falham?
Fonte: Shao, Guosong. Internet Law in China. 1ª ed. 2012. Alguns dispositivos e normas podem ter sido modificados desde sua publicação, mas a estrutura geral e os princípios regulatórios permanecem como base interpretativa.
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