terça-feira, 22 de julho de 2025

Identidade étnica vai além do que você imagina, principalmente na China.

Em meados de julho de 2025, no condado de Yanbian, província de Sichuan, a comunidade Yi se reuniu para celebrar o tradicional Festival das Tochas, uma festividade que alguns chamam de “Carnaval do fogo” chinês, considerado hoje um patrimônio cultural imaterial. O Festival originou-se da adoração do fogo pelos ancestrais e tem sido seguido por mais de 1.000 anos.

Nino Rhamos: Identidade étnica vai além do que você imagina, principalmente na China.
Foto da performance de Dorohe por Wang Yulin

Embora festas coletivas façam parte de muitas culturas, o que chama atenção aqui é o modo como essas manifestações são parte viva da identidade desses grupos, um contraponto ao olhar homogêneo muitas vezes associado a uma China homogênea e hi-tech.

Durante o festival, com suas fogueiras comunitárias, danças étnicas, cantos tradicionais, competições populares, percebemos um princípio forte de coletividade ritualística. No entanto, isso não se trata apenas de entretenimento ou uma performance estética, mas uma reafirmação anual de pertencimento étnico, de conexão com membros do grupo e com a terra ancestral.

Nino Rhamos: Identidade étnica vai além do que você imagina, principalmente na China.
O local principal do Festival da Tocha das Minorias Étnicas 
no condado de Yanbian foi ocupado por Wang Dong

É através dessas cenas, da chama partilhada e de todo ritual coletivo que a comunidade Yi reafirma seu lugar dentro e além da narrativa mais ampla da China contemporânea.

Para quem acompanha debates sobre relações étnicas na China, esse evento mostra que minorias não são meramente “peças alegóricas” dentro da identidade nacional, e tampouco existem descoladas da ideia de país. Assim como qualquer agrupamento social (considerado étnico ou não), através de rituais afirma sua própria história e provoca reflexões. No caso de um povo minoritário que sempre está em contraponto a identidades mais normatizadas, o povo Yi (tal como os povos indígenas brasileiros) afirma valores sobre diversidade, identidade e coletividade, primeiro como diferencial dentro de um Estado unitário, segundo como identidade partilhada com a identidade nacional.

Nino Rhamos: Identidade étnica vai além do que você imagina, principalmente na China.
Foto da competição tradicional por Wang Dong

Vale lembrar que suas tradições também dialogam com práticas contemporâneas, como no caso do camping comunitário, que mistura turismo, ancestralidade e convivência social.

A partir da minha pesquisa sobre coletividade no cinema chinês até 1949, posso traçar uma conexão interessante. Tanto no filme comum da época quanto nos eventos étnicos, o coletivo sempre se expressa como experiência de sentido e marcador identitário, para além da própria etnicidade enquanto diferença. Isso acontece porque o coletivo é sempre acionado como valor compartilhado que mantém a coesão social na China. No cinema, isso ocorria tanto em filmes considerados conservadores quanto naqueles chamados de "cinema de esquerda". A disputa era pelo sentido de coletivo e não entre indivíduo e sociedade.

Nino Rhamos: Identidade étnica vai além do que você imagina, principalmente na China.
Foto da competição de luta de ovelhas por Wang Dong

Nesse sentido, o festival pode ser usado como provocação ao olhar ocidental, tão acostumado a ver a relação entre indivíduo e sociedade como algo "naturalmente" hostil. Nos filmes da primeira metade do século XX, a estranheza pode vir de não encontrar um “herói solitário” no centro da cena, mas narrativas coletivas que ganham sentido e, ao mesmo tempo, reforçam a identificação dentro da teia social. No caso do ritual do povo Yi, a provocação surge da não oposição entre etnicidade e nação, ou seja, na consolidação de uma identidade local que compartilha uma identidade coletiva mais ampla, reconhecida hoje como identidade nacional.

Nino Rhamos: Identidade étnica vai além do que você imagina, principalmente na China.
Na praça da tocha de Gesara Yi Township, as pessoas dançaram 
ao redor do fogo Foto de He Chuan

É muito importante que enxerguemos tais festejos de forma mais ampla e menos alegórica. Esse olhar, embora muitas vezes parta de um genuíno desejo de valorização, acaba, sem perceber, por engessar esses grupos em um lugar exótico e distante da contemporaneidade, o que não é verdade. Sobretudo na China, onde as pessoas têm consciência de sua origem étnica, mantêm suas práticas e idiomas regionais, ao mesmo tempo em que articulam sua participação nas decisões políticas do país.

Festival da Tocha do Grupo Étnico Yi começa em Sichuan, na China. 
(CCTV Video News Agency)

Mesmo que, na China, isso seja óbvio devido à própria formação da identidade nacional com base em um conceito inclusivo de nação (pesquise por Mingzu Zhuyi, 民族主义), em contextos ocidentais palavras como “nação”, “etnicidade” e “identidade nacional” podem possuir sentidos muito particulares, que não devem ser usados para explicar dinâmicas não ocidentais.

Vou deixar aqui a matéria completa sobre o festival, que me inspirou a fazer esta breve reflexão.

segunda-feira, 21 de julho de 2025

120 anos sem Hollywood: O que o cinema chinês tem que você nunca viu?

O ano de 2025 é simbólico, pois a China celebra 120 anos de cinema. O mês de julho virou pauta na imprensa asiática depois que o presidente Xi Jinping, em carta aberta a cineastas, reforçou a importância de criar obras que expressem o “espírito da época”, uma espécie de convite para que o cinema chinês siga impulsionando às transformações culturais e políticas do país.

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Espectadores de cinema assistem ao sucesso de bilheteria de animação chinês "Ne Zha 2" 
em Shangai, China, em 29 de janeiro de 2025. /VCG (CGTN)

Falar das gerações do cinema chinês é, mais do que uma linha do tempo, um mergulho na relação entre política, arte e coletividade. Os primeiros filmes, lá de 1905, ainda tímidos e fortemente influenciados por estilos ocidentais (embora também relacionado fortemente ao tradicional teatro das sombras), traziam um olhar que misturava modernidade importada e cotidiano local. Até o início dos anos 1930, muito desse cinema ainda estava relativamente fora de uma lógica política engajada, mas, curiosamente, os dilemas em torno do coletivo já apareciam nas telas, às vezes de modo indireto, outras vezes como pano de fundo para discussões sobre papeis de gênero, tradição e mudança.

Montanha Dingjun (1905). O primeiro filme chinês já feito. 
O conteúdo era uma representação cantada da Batalha do Monte Dingjun.

Com a chegada dos anos 1930, o cinema chinês passa a ser atravessado pelas divisões políticas internas. É nesse período que se convencionou falar em “cinema de direita” e “cinema de esquerda”. Não se trata, aqui, de importar as categorias como as usamos hoje, mas de entender que essas divisões traduziam os embates e projetos de país daquele momento histórico. O interessante é notar que, mesmo em lados opostos, o tema da coletividade nunca deixava de ser central. Não havia aquela obsessão pelo indivíduo heroico típico de Hollywood; o foco estava sempre no grupo, na família, na ideia de nação em disputa.

Essa dinâmica de absorver influências externas também tinha bastidores. Já no início do século XX, o cinema ocidental era visto como ferramenta estratégica para os interesses das potências que atuavam na China, entre elas, EUA e Japão. Antes mesmos da revolução socialista de 1949, segundo pesquisas, de figuras institucionais dos EUA realizando pesquisas para entender a aceitação do cinema ocidental e encontrar maneiras de consolidar o “american way of life” nas telas chinesas. O cinema era parte da engrenagem geopolítica e, ao mesmo tempo, um espaço de resistência e reinvenção.

Após 1949, com a fundação da República Popular da China, o cinema passou por novas inflexões, ora como instrumento oficial de construção do coletivo socialista, ora como campo de disputa simbólica. Da chamada “quinta geração” nos anos 1980, com filmes como Yellow Earth, que revolucionaram a linguagem ao unir paisagem, silêncio e crítica social, até a explosão recente de animações e superproduções épicas como, a coletividade que está imersa em elementos profundos da sociedade chinesa, segue atravessando narrativas, estéticas e projetos com estética contemporânea.

Trailer de Yellow Earth (1984)

Falar das gerações do cinema chinês, é reconhecer que a coletividade nunca deixou de ser questão central, mudando de cor, de tom, de linguagem, mas sempre presente, seja nos grandes épicos, nos dramas urbanos ou nas animações de bilheteria recorde. Depois da chamada “quinta geração”, vieram novos movimentos: cineastas da sexta geração, como Jia Zhangke, exploraram o cotidiano urbano, o deslocamento social e as transformações do país, muitas vezes com narrativas mais intimistas, porém sem perder o pano de fundo coletivo. O indivíduo aparece, mas sempre em diálogo com os efeitos das mudanças sociais mais amplas.

Nos anos 2000 e 2010, o cinema chinês também se abriu a gêneros populares, superproduções históricas, blockbusters e animações como Ne Zha (2019) e Ne Zha 2 (2025), que trouxeram temas tradicionais para o centro do consumo de massa e reafirmaram o potencial da cultura local de dialogar com o mundo. 

Trailer oficial de NE ZHA 2 (2025)

O sucesso recente de filmes épicos, de guerra ou animações digitais não é apenas resultado de uma indústria poderosa, mas também de uma busca constante de conexão com a identidade coletiva, seja celebrando figuras históricas, recontando mitos ancestrais ou abordando desafios contemporâneos.

O convite de Xi Jinping neste aniversário de 120 anos é, no fundo, uma atualização desse mesmo debate. Como transformar o cinema em expressão viva do que pulsa no coletivo chinês? E como as diferentes gerações de cineastas vêm lidando com essa tarefa, seja revisitando o passado, como exploro na minha pesquisa sobre o cinema até 1949, ou projetando novas possibilidades para o futuro?

Trailer de Red Land (红土地, 2025)

Qual geração do cinema chinês mais te provoca ou emociona? E o que isso diz sobre o que buscamos, como sociedade, em tela?

domingo, 20 de julho de 2025

O BRICS não gira em torno do umbigo liberal. Será que você tá pronto pra ouvir isso?

A recente cúpula do BRICS no Rio de Janeiro reforçou um ponto frequentemente ignorado nas análises geopolíticas tradicionais: a disputa entre duas visões distintas do mundo, uma centrada na cooperação coletiva e outra no individualismo.

Nino Rhamos. BRICS 2025: quando o coletivo chinês e brasileiro molda novas relações internacionais. China. Ajuda mútua. Cooperação

Essa diferença, ainda que muitas vezes sutil, aparece claramente nas posturas adotadas pela China e pelo Brasil, especialmente durante o governo do presidente Lula.

No início deste mês, a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Mao Ning, reforçou o compromisso chinês com o fortalecimento da cooperação multilateral entre os países do Sul Global. Ao enfatizar a importância da plataforma BRICS para a promoção do desenvolvimento comum e da governança global equitativa, ela destacou um princípio fundamental da cultura chinesa: o entendimento de que a força de um grupo vem da solidariedade interna e da colaboração mútua.

Quem tem contato com chineses e com a cultura chinesa há muito tempo sabe que esse pensamento é algo presente na vida cotidiana, o que reflete naturalmente nas decisões políticas e diplomáticas. A própria expressão 相互帮助 (Xiānghù bāngzhù), que significa literalmente ajuda mútua, é um dos exemplos mais cotidianos e expressivos. 

Ao contrário do que algumas análises feitas por ocidentais (e por países simpatizantes) podem sugerir, a defesa chinesa de um desenvolvimento coletivo não é simplesmente uma estratégia para obter vantagens unilaterais. É expressão genuína de um elemento sociorelacional mais profundo, que compreende que avanços reais e duradouros só podem ocorrer de forma conjunta e compartilhada.

Essa abordagem, no entanto, embora facilmente compreendida como um elemento moral, não carrega necessariamente tais intenções. Chamo atenção aqui para um elemento que está presente na visão de mundo em diversos contextos não ocidentais, mesmo que a expressão da ideia coletiva ocorra respeitando especificidades locais. Ou seja, ela reflete práticas sociais internalizadas e comuns na vida cotidiana chinesa.

O presidente Lula tem adotado uma postura semelhante em seu governo, tanto internamente, em políticas públicas que valorizam a inclusão e o desenvolvimento social coletivo, quanto na esfera internacional, promovendo um multilateralismo mais robusto. Sua posição frente ao BRICS reforça essa visão, o que se alinha à China na defesa da solidariedade internacional e na construção de uma ordem mundial baseada na justiça social e no desenvolvimento equitativo.

Nino Rhamos. BRICS 2025: quando o coletivo chinês e brasileiro molda novas relações internacionais. Lula e Xi Jinping. Brasil e China

Exemplo disso é a firme posição chinesa de apoio a Cuba frente às sanções unilaterais impostas pelos Estados Unidos. Ao defender que cada país deve seguir um caminho adequado às suas próprias condições e realidades, a China evidencia seu respeito às particularidades nacionais e à soberania dos povos, uma atitude que encontra ressonância direta nas falas e ações do governo brasileiro nos últimos anos.

Essa perspectiva também revela a reação de alguns setores influenciados pelo pensamento ocidental, que frequentemente interpretam tais posturas cooperativas como “ameaças” ou estratégias ocultas de dominação. Curiosamente, se assemelha à dinâmica interna do Brasil, no que diz respeito às falas dos grupos mais críticos ao Lula.

O que está em jogo aqui não são apenas ideologias políticas, mas visões radicalmente diferentes de mundo que transcendem a ideologia política engessada em direita e esquerda, embora sejam a sustentação de escolhas políticas significativas, expressas nessas ideologias. Enquanto o individualismo liberal ocidental desconfia do altruísmo genuíno nas relações internacionais porque opera em um sentido de que o outro, por natureza, seria seu opositor, a mentalidade coletiva chinesa – e agora também a brasileira sob Lula – enxerga a colaboração não como fraqueza, mas como a única base sólida para um progresso real e duradouro.

Vale acentuar que, justamente por não ser uma escolha moral (mesmo quando justificada dessa forma por alguns atores políticos), não existe garantia de que tal visão de mundo esteja já consolidada, sustentada em uma cultura engessada e imutável. Ela precisa ser constantemente reafirmada para que o movimento político ganhe esse aspecto. Tal como há anos, ou melhor, séculos, é feito com a visão de mundo liberal que coloca o "todos contra todos" como uma condição natural da existência humana. Considerando a dinâmica onde a premissa das relações dominantes já se estabeleceu como norma natural, o coletivismo ressurge como uma visão própria de mundo, mas se sustenta na dinâmica relacional quando acionada de forma deliberada.

Deixo você com esse vídeo onde uma chinesa jovem foi perguntada sobre as diferenças entre os sonhos dos chineses e dos estadunidenses. Ele expressa bem o que foi argumentado aqui.

Nesse cenário, a cúpula do BRICS realizada no Brasil em julho não foi apenas um evento diplomático, mas uma ilustração viva da coexistência de múltiplas visões sobre o papel dos países no mundo. Mais do que economia ou disputas políticas, foi o palco onde duas abordagens culturais profundas emergiram com clareza.

Até que ponto estamos preparados para reconhecer e valorizar perspectivas que transcendem nossa própria socialização?

Abraços.


sábado, 19 de julho de 2025

Por que as ciências sociais têm medo do mercado? China, vida universitária e coletivo

Lembro bem do intervalo entre as aulas de Ciências Sociais, vendo um grupo de colegas sentado no centro acadêmico, cada um imerso nos próprios pensamentos, mas tentando, ao mesmo tempo, compartilhar expectativas e incertezas. Ali, os discursos eram quase sempre os mesmos, como se dissessem: “Não venham para cá falar de mercado. Isso é coisa de liberal.” Era como se o mercado fosse um fantasma, uma negação absoluta do que o curso propunha. Claro, uma ilusão de quem escuta apenas o que quer do que estuda.

Quando cheguei ao final da graduação, percebi que muitos desses colegas, já com o “pé fora” da universidade, não sabiam qual passo dar. Tinham sido preparados para ler teoria, debater autores clássicos e produzir textos, como se, durante a graduação, a sociedade se resumisse ao ecossistema dos debates acadêmicos. Ninguém falava de como usar aquele conhecimento para enfrentar o mundo real. Não estou criticando professores nem apontando culpados. Isso certamente é fruto de elementos socioantropológicos mais profundos que operam dentro da própria academia brasileira. Estou apenas constatando que essa negação frontal do mercado, como algo que deve estar fora dos debates, deixava muita gente sem bússola quando se dava conta de que nunca esteve naquele universo em que problematizar o mundo bastava para se sentir útil. Todos precisaríamos, de alguma forma, trabalhar após a formatura — mas por que a ficha só caiu no final do curso?

Foi observando a China que percebi um contraponto poderoso. A força das relações de trabalho na sociedade chinesa é milenar e, no século XX, ganhou ares contemporâneos com a revolução socialista de 1949, sem, no entanto, perder seus sentidos específicos. As práticas do envelope vermelho e até as micro-relações sociais expressas nas trocas de presentes e demais relações entre amigos e parentes são elementos significativos que mostram como o dinheiro opera de forma diferente do que concebemos.

Em termos mais abrangentes, esses sentidos se refletem na não hierarquia rígida entre o “acadêmico” e o “mercado”. Lá, o mercado faz parte de um ecossistema mais amplo, orientado pelo interesse coletivo. O poder político concentra-se no Estado para garantir que iniciativas empresariais contribuam para o bem-estar social e que interesses particulares não se sobreponham aos públicos. Não se trata de subordinar a universidade ao capitalismo liberal (como poderiam imaginar), mas de reconhecer a importância de empreender dentro de uma lógica que privilegie o coletivo, de modo que todos os estudantes tenham perspectiva além do gargalo de oportunidades do meio acadêmico.

No nosso contexto sociopolítico, o mercado costuma ser associado ao individualismo liberal — daí a confusão entre mercado e capitalismo nas redes sociais, onde pessoas criam argumentos partindo de um princípio equivocado: o de que a própria existência do mercado seria uma invenção do capitalismo. Isso também respinga no ambiente acadêmico, onde ele é visto como força que contraria a “pureza” acadêmica das ciências sociais.

Mas e se reconfigurássemos termos como “empreendedorismo” e “carreira” dentro de um projeto de amplo alcance social? Em vez de ignorar esses conceitos, poderíamos incorporá-los ao currículo e às discussões, preparando alunos para dialogar com empresas, ONGs e poder público, sem demonizar palavras e práticas comerciais simplesmente por serem associadas ao princípio liberal — uma associação construída e, por isso, não natural, podendo ser reconstruída, ressignificada.

Na China, universidades promovem feiras de inovação social com apoio de governos locais — um contexto em que estudantes de antropologia provavelmente não seriam execrados por implementar métodos de campo em startups de impacto, por exemplo. É uma convivência quase espontânea — por estar calcada em sentidos sociais compartilhados e tidos como dados pela maioria — onde o saber acadêmico nutre não apenas a si mesmo, mas também o mercado. E o mercado, por sua vez, apresenta desafios concretos para a pesquisa, que pode ser financiada pelo Estado, somando a um corpo maior do conhecimento humano sobre o tema. Mas também voltada ao desenvolvimento do próprio mercado em termos concretos, pois emprego e qualidade de vida retornam em benefício da sociedade. Não há contradição, apenas a convicção de que a produção de conhecimento só faz sentido se também dialogar com demandas reais, em vez de atender apenas a um ecossistema autossuficiente de produção de conhecimento — que vive quase de uma autofagia intelectual, descolada do todo, ignorando os alunos e suas vidas futuras após o período de formação.

Este texto é um relato pessoal da experiência que vivi e vi nos meus colegas — principalmente aqueles que entraram jovens na universidade e se deslumbraram com o acolhimento de um ambiente que, no fundo, não lhes dá nenhuma opção além de tentar lutar para se incluir nele, mesmo sabendo que não há vaga para todos. Ele pode ser também um exercício de imaginação: e se deixássemos de lado a negação do mercado e começássemos a enxergá-lo como parte integrante de um sistema maior, centrado no coletivo? O “problema” não está na sua existência — mercado existe desde sempre — mas quando grupos o tomam como centralidade política, defendem interesses individuais de acúmulo e passam a sustentar pautas desvinculadas dos interesses públicos.

Talvez o maior ganho seja perceber que não precisamos escolher entre a sala de aula e o mundo lá fora. A sala de aula já está inserida no mundo social, ainda que aqueles que passaram anos vivendo dela tenham perdido essa percepção. 

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Novos olhares do cinema chinês: Zhang Ziyi se torna diretora

O cinema chinês vive um momento de renovação que vai muito além de roteiros ousados ou efeitos de última geração. Em julho de 2025, duas notícias simbolizam essa virada: a estreia de Zhang Ziyi como diretora em Swimming 100 Meters From the Coast e a realização, em Chongqing, do SCO Film Festival, que trouxe ao palco um mosaico de narrativas regionais.

Zhang Ziyi, que conquistou o mundo como atriz em sucessos como Crouching Tiger, Hidden Dragon, agora assume as rédeas criativas de seu primeiro longa. Ambientado em províncias como Anhui, Fujian e até Taiwan, Swimming 100 Meters From the Coast mergulha na busca de uma jovem pelos rastros do passado de sua avó, desenhando memórias que atravessam gerações. A diretora reuniu Vicky Chen e o roteirista Li Yuan para formar o que críticos já chamam de um “Ultimate Team”.


Paralelamente, entre 4 e 10 de julho, o SCO Film Festival (que eu falei aqui há alguns dias) aterrissou em Chongqing com 1.500 delegados de dez países-membros, reafirmando o papel da China como hub cultural regional. Mais do que exibir filmes, o evento celebrou a capacidade do cinema de construir pontes, convidando cineastas a trocarem visões sobre identidade, tradição e futuro compartilhado.

Esses dois acontecimentos revelam, de formas distintas, um movimento de descentralização criativa. De um lado, grandes nomes do star system cinematográfico (como Zhang) passam a contar suas próprias histórias, trazendo olhares íntimos sobre família, memória e lugares menos explorados pela indústria. Do outro, plataformas como o festival da SCO ampliam o espaço de diálogo entre narrativas de diferentes regiões, impulsionando coproduções e parcerias que fogem ao eixo Pequim-Xangai.

Para a antropologia do cinema, essa conjunção é um terreno fértil de análise: há um deslocamento no eixo de poder criativo, em que roteiristas, atrizes e produtores regionais ganham voz e protagonismo. Não se trata apenas de diversificar o cardápio de gêneros, mas de questionar quem conta as histórias e de que perspectiva. Quando a direção deixa de ser um ofício exclusivo de certos estúdios e figuras históricas, ganha-se em riqueza cultural e complexidade de narrativas.

Este é o momento de ficar de olho nas janelas abertas por esses novos agentes. O cinema chinês não está apenas se reinventando; ele convida o público global a repensar as fronteiras entre autor e espectador, entre passado e futuro, individualidade e coletividade.

E você, que diretor ou obra de cinema chinês chamou sua atenção recentemente? Compartilhe suas descobertas nos comentários.

Abraços!

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Quando o coletivo redefine o poder: o fascínio global pelo modelo chinês

Vivemos um momento de inflexão na geopolítica e na forma como entendemos as sociedades. A análise da Al Jazeera sobre a “estratégia coletiva” chinesa sinaliza algo maior do que o simples reforço do soft power. Revela uma mudança de paradigma na relação entre indivíduo e Estado

Enquanto o Norte Global, por séculos, ditou o padrão de administração política e econômica, hoje vemos outras regiões — e, em especial, a China — apresentarem modelos alternativos de governança, pautados em tradições coletivistas milenares.

Essa opção não nasce do nada. O coletivismo chinês tem raízes no confucionismo e em dinastias que, por mais de dois milênios, articularam identidades internas ao redor de valores compartilhados. No início do século XX, essas tradições deram forma a uma noção de “identidade nacional” construída em sem apagar as especificidades étnicas e regionais. O resultado é um sistema capaz de mobilizar recursos estatais e sociais em projetos culturais envolvendo uma ampla gama de identidades internas.

Esse movimento global de reenquadramento político-cultural nos convida a repensar o que, de fato, entendemos por participação popular. Se outras formas de administração dos interesses públicos e articulação social podem produzir resultados eficazes, vale a reflexão: 

Será a visão ocidental realmente o parâmetro universal que acreditamos?

E você, como enxerga esse momento de inflexão? Deixe suas impressões nos comentários!

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Jovens cineastas em foco: International Film Camp 2025 abre inscrições para coletividade criativa

Hoje li sobre o International Film Camp 2025, promovido pela Asian Film Awards Academy em Macau, com inscrições abertas até 20 de julho para cineastas emergentes de toda a Ásia. O evento vai acontecer de 11 a 15 de setembro de 2025, reunindo jovens cineastas de 21 a 40 anos para uma imersão de cinco dias em aprendizado audiovisual, storytelling e mercado.

O Camp oferece mentoria individual com profissionais veteranos como o produtor John Chong, além de masterclasses e sessões de pitch para conversar diretamente com especialistas. Ao final, oito projetos receberão HK$300.000 de financiamento cada, cerca de US$38 mil, para produzir curtas-metragens com temática de “My Best Friend”.

Como pesquisador interessando em cinema, coletivismo e representações étnicas, vejo a relevância desse Camp em proporcionar um espaço para jovens cineastas expressarem suas visões e serem apoiados financeiramente. O suporte da Sands China, do governo de Macau e de agências culturais reforça que o cinema pode ser instrumento tanto de formação artística quanto de intercâmbio cultural. 
Ainda não há detalhes públicos sobre a diversidade étnica dos participantes nem sobre direitos autorais ou distribuição futura dos filmes. Mas é significativo saber que cineastas da Ásia poderão ser ouvidos e apoiados formalmente para criar curtas com estrutura profissional.

Este tipo de iniciativa me instiga a refletir: quais coletivos estão participando? Há jovens cineastas que representam minorias culturais, dentro da China ou em outros países asiáticos, no rol de candidatos ou vencedores? Será interessante acompanhar publicações futuras sobre os resultados do Camp, para entender como esses projetos se conectam com dinâmicas de identidade e pertencimento em contextos coletivos.

Este programa mostra que, nos bastidores do cinema, há sim potenciais espaços de encontro, criação e coletivos, seja na troca de ideias, seja na construção compartilhada de narrativas. 

Fica o convite para acompanhar o desdobrar dessa edição e ver como os projetos escolhidos podem refletir as pluralidades da Ásia contemporânea.

segunda-feira, 14 de julho de 2025

No coração de Chongqing: cinema e coletividade no SCO Film Festival 2025

Recentemente teve o início do 2025 SCO Film Festival em Chongqing: mais de 1.500 cineastas e delegados de países-membros reunidos para exibir o poder do cinema na China como ponte entre coletivos diversos. 

Como não estou lá, imaginei a praça iluminada pelos projetores e os olhares atentos de jovens, embaixadores e profissionais do setor.

No festival, foram exibidos longas-metragens que exploram temas de pertencimento, identidade e sacrifício, em sintonia com as narrativas nacionais de cada país participante, mas convergindo num roteiro comum: a valorização do 'nós' em contextos distintos.

A China, quando convida outras nações a compartilhar suas histórias, me faz pensar em como esse festival funciona como uma expressão da própria noção de coletividade chinesa. Todos presentes, diplomatas, cineastas independentes, estudantes e a comunidade local, se emocionando diante de cenas que refletem suas diferenças, mas, ao mesmo tempo, elementos universais.

Por outro lado, como pesquisador que também pensa nas relações étnicas, penso sobre até onde as minorias étnicas chinesas aparecem nesses longas.

Será que, ao celebrar o cinema como vetor de cooperação regional, reconhecemos também as vozes internas menos hegemônicas? Quais filmes do festival trazem narrativas de minorias e coletivos periféricos, para entender como esses grupos se situam no grande espetáculo do cinema estatal e transnacional?

Muito provavelmente há filmes étnicos nesse meio, mas como a questão étnica na China é compreendida como dada e não como exceção, nem sempre esses elementos são expostos como pontos atrativos de publicidade.

Sai dessa leitura com a sensação de estar diante de um mapa em movimento. Plateias vindas de diferentes latitudes, constroem uma rede de significados em torno do 'todo'. 

Fica a provocação: como o cinema pode ensinar a dançar no mesmo compasso, mesmo quando as origens são diversas?

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Frames e fronteiras: o Chinese Film Week em Bruxelas

Hoje acordei pensando no inevitável poder do cinema como elo entre culturas. 

Li a notícia sobre o Chinese Film Week em Bruxelas, um evento que começou em 28 de junho no China Cultural Centre, com exibição de Endless Journey, e com debates que reuniram diplomatas, cinéfilos e pesquisadores europeus, EUobserver+1Travel Tomorrow+1.

Esses eventos, para além do que eles são, eventos de gala, me faz refletir em termos antropológicos sobre o que faz uma narrativa policial chinesa gerar ponte com o público europeu? Segundo os organizadores, entre lágrimas e aplausos, o filme revelou “valores universais” e uma lógica de justiça que ultrapassa fronteiras. E talvez seja isso que torna o cinema chinês um material rico para refletir coletivismo, porque ele não apenas mostra laços comunitários, mas exerce essa função simbólica globalmente.

O gesto de apresentar uma obra dramática, que trata de justiça e sacrifício, no coração da diplomacia cultural em Bruxelas, representa uma estratégia chinesa de cooperação não só econômica, mas simbólica, por meio do soft power. É uma forma sutil de reforçar coletivismo. Ao valorizar o heroísmo em grupo, contamina a audiência estrangeira com certa lógica de pertencimento, ainda que vista de outro prisma.

No meu estudo sobre etnicidades no cinema, essa iniciativa alimenta um olhar mais amplo. A China é um país plural (com suas minorias étnicas e "maiorias", costumes, crenças) que escolhe compartilhar narrativas valendo-se de temas universais para engajar outros coletivos. E o cinema, nesse sentido, dialoga com uma lógica parecida com a que percebo em outros contextos de análises: arte que traduz o próprio ser coletivo e se infiltra em outra comunidade, refletindo no imaginário compartilhado entre diferenças.

Como pesquisador, com essa reflexão hoje me senti provocado. Devo olhar cada exibição internacional também como experimento social. E pensar sobre como as reações do público estrangeiro (diplomatas, entusiastas, migrantes) pode revelar tanto sobre percepções da China quanto sobre nossa capacidade humana de nos reconhecer na alteridade.

Curioso para saber como Endless Journey será recebido em outras capitais e se haverá tradução desse storytelling coletivo em discussões acadêmicas? 

Deixo no ar.


Abraços.

domingo, 6 de julho de 2025

Chegando ao topo: O clímax da caminhada pelas Montanhas Wudang

Hoje compartilho o episódio mais importante do meu Vlog de Campo na China: a chegada ao topo das Montanhas Wudang, no lendário Palácio Dourado (Taihe).

Essa conquista representa muito mais do que um simples roteiro de viagem, é a realização de um sonho que me acompanha desde a adolescência e que influenciou diretamente meus estudos em antropologia, cultura chinesa e performance.

Depois de quatro horas subindo degraus entre paisagens de tirar o fôlego, finalmente cheguei ao auge da experiência. Registrei cada detalhe desse momento, com toda a emoção de quem sempre quis estar ali.

Assista ao vídeo completo, veja como foi a chegada e descubra por que esse lugar é tão especial no imaginário chinês (e no meu também!)


Se quiser acompanhar os outros episódios da viagem, confira a playlist completa aqui:

👉 https://www.youtube.com/playlist?list=PLLUj2wug2LDkkz-35HbzTBReKNfSXkc9n