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O que há de vira-latismo na crítica do vira-latismo?

Recentemente, a declaração de um senador, cujo nome não citarei para não alimentar sua presença nos meios virtuais, repercutiu nas mídias de esquerda. O evidente "vira-latismo" do senador causa repulsa a qualquer um que compreenda o papel nocivo que os EUA desempenharam em diversos momentos da história recente do Brasil.


caramelo na nota de 200 e o vira-latismo brasileiro

Para quem não sabe, o termo "vira-latismo" faz referência ao sentimento de inferioridade que alguns brasileiros cultivam sobre si mesmos. Cunhado por Nelson Rodrigues após a derrota do país na Copa de 1950, ele hoje é utilizado para representar essa característica peculiar da brasilidade de alguns.


O "americanismo" (de forma geral) não é algo novo. Teorias norte-americanas influenciaram debates sobre a república brasileira, influenciaram os estudos indigenistas, passando pelo apoio daquele país ao golpe de 1964, resultando em um imaginário completamente enviesado sobre o que somos; algo expresso com "orgulho" pela extrema-direita ativa no país hoje.


Esse impacto é tão nocivo que muitos brasileiros, de diferentes espectros políticos, ainda usam aquele país como referência de ideal a ser atingido, em vez de incentivar que o Brasil busque referências positivas em outros países, mas siga seu próprio caminho ao desenvolvê-las, preservando valores e visões de mundo próprios.


De volta ao caso do senador, ele falou em inglês no plenário para defender, apoiar e "agradecer" ao bilionário estadunidense por ele ter atacado o STF, o presidente e nosso sistema político, e, por consequência, nossa soberania. Inclusive, o caso eu escrevi um post sobre esse caso do bilionário. Acesse aqui.


Essa atitude repugnante reflete o quanto ainda dirigimos nosso país preservando um imaginário completamente colonizado.

Nas críticas que o senador recebeu, diversos personagens da esquerda revelaram como a necessidade de descredibilizar de forma muito emotiva pode se transformar em um deboche perigoso, além de expressar nuances de nossa própria condução ainda subordinada ao imaginário dos "states" como local de referência.


O uso do inglês no Brasil, há tempos, é um marcador de relações de poder, provavelmente devido a toda essa referência da fluência no idioma como representação de superioridade, acessível até pouco tempo apenas às classes mais abastadas.

O inglês do senador foi criticado como manifestação de seu latente "vira-latismo", em vez de expor quão submissa foi sua atitude.


Diversos povos do mundo falam inglês como língua franca, enquanto outros têm o idioma como oficial. Na maioria dos casos, isso se deve aos processos históricos de dominação inglesa no século XIX e estadunidense após a segunda metade do século XX. Bem, isso é um outro debate. De qualquer forma, não há como não utilizá-lo hoje como língua franca, mas como devemos fazer isso? Certamente não é performando um "americanismo" tosco e sim mantendo nossa identidade sociocultural.


Diversos povos usam o idioma à sua maneira, expressando, além dos sotaques, todas as referências de suas línguas de origem, terminologias locais e expressões culturais, entre outras especificidades. Tentar se adequar a uma maneira particular de expressar o inglês representa, além de tudo, uma reprodução da condição de subordinação e colonização, uma necessidade de se adequar a algo que seria considerado superior.


Nada mais típico do século XIX, mas não do século XXI. Principalmente considerando o mundo multipolar que se forma, onde o Sul Global representa parte significativa do globo e luta, principalmente, contra essa condição histórica de subordinação à qual os países do bloco foram submetidos.


Em minhas pesquisas sobre a China, uma das características que mais percebo na relação com os nativos é, sobretudo, a postura que eles têm com o uso de diferentes idiomas. A China possui uma infinidade de idiomas em uso cotidiano e diversos sotaques do próprio mandarim oficial. Isso ocorre devido a toda a diversidade étnica que difere do Brasil, porque é um país onde todos são étnicos. Esse contexto de multiplicidade étnica moldou maneiras específicas de lidar de forma acomodativa com as diferenças linguísticas.


O Brasil, pasmem, também não é feito apenas de português e inglês. Atualmente, há mais de uma centena de línguas faladas entre povos indígenas que, pasmem, são brasileiros e suas línguas também são brasileiras. Dentre elas, o Tikuna, o Guarani Kaiowá, o Kaingang, o Xavante e o Yanomami. Além disso, o Ioruba também é falado aqui. Presente na etnia Nagô, ela ganha destaque em ritos religiosos de matriz afro, principalmente o Candomblé. Estima-se que antes da invasão portuguesa, eram falados mais de 600 idiomas nativos no Brasil.


Achar que um brasileiro é inferior por não conseguir expressar o inglês de forma "gringa", o que se mistura muitas vezes com uma espécie de norma culta do idioma, desejada por muitos, independente do espectro político, é uma forma de expressar uma idealização no idioma "gringo", um status de superioridade quase civilizatória.


Nesse sentido, a crítica ao senador, mesmo que justificável por falhas como "ele tentou até traduzir o nome...", soa problemática.


É claro que a ação do senador é muito mais expressiva do ainda prevalente "vira-latismo" de alguns brasileiros e não faço aqui qualquer equiparação com as ações dos partidos progressistas, que são os que, à sua maneira, fazem o Brasil resistir em termos de soberania.


O debate moral e a chacota preconceituosa, no entanto, são recursos da extrema-direita e não refletem o país que desejamos, altivo, ativo, sem complexos de inferioridade, respeitado e soberano em todas as dimensões.




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